Desoneração, CPMF Digital e Renda Cidadã

Nas últimas semanas, a equipe econômica do Governo Federal buscou articular através da base de apoio no Congresso, a derrubada dos vetos do Presidente da República à lei que teve origem na Medida Provisória 936. A MP foi editada em abril e aprovada pelo Senado em 17 de junho de 2020, com a justificativa de criar condições para que as empresas de 17 setores intensivos em mão de obra, possam manter os atuais empregos até o final de 2021, além de prorrogar outros importantes incentivos à produção.  

O Presidente vetou a prorrogação dos pontos mais críticos da MP, rejeitando: a desoneração da folha de pagamentos de empresas; a permissão ao empregador para negociar metas e valores de participação em lucros com cada empregado; a correção de débitos trabalhistas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) mais a variação da poupança, e da dispensa do cumprimento dos níveis mínimos de produção, exigidos para a obtenção de benefícios fiscais. A redução tributária nesse caso, que encerraria em dezembro deste ano, de acordo com o projeto, ficaria prorrogada até dezembro de 2021.

O Governo sabe, embora não reconheça, que a aprovação da desoneração da folha de pagamento, implicará numa perda de arrecadação estimada em R$ 100 bilhões, e não pode dar como certa a aprovação da proposta de criação do Imposto sobre Transações Digitais (CPMF Digital), como garantia de captação dos recursos necessários à prorrogação da desoneração da folha e viabilização do programa Renda Cidadã.

O novo programa de renda pretende elevar o valor do benefício do programa Bolsa Família, além de agregar os milhões de brasileiros, até então invisíveis¹, descobertos durante o pagamento do Auxílio Emergencial, constituindo-se em um grande rebanho eleitoral naturalmente sensível a qualquer agrado. Fato constatado recente elevação da avaliação do Presidente, depois de realizado pagamento do Auxílio Emergencial, conforme pesquisa do Datafolha.

É muita pressão sobre nossos congressistas é tamanha que certamente irá fazer com que cedam à derrubada dos vetos presidenciais, assumindo riscos para garantir votos.

Se existe uma coisa em que ninguém acredita mais, é que estabelecida uma data para terminar os efeitos de uma lei que beneficie setores econômicos mais expressivos, o Governo cumpra o que foi acordado, ou seja, cesse com os benefícios. Prova disso é que a desoneração da folha de pagamento vigora desde 2012, e teve uma primeira avaliação descrita no livro “Desoneração da Folha de Pagamentos: oportunidade ou ameaça?”, lançado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), com o objetivo de analisar os impactos e as consequências desse   modelo de desoneração da folha de pagamentos sobre as contas da Previdência Social brasileira.

Uma segunda edição, publicada no ano seguinte pela Associação, incluiu as diversas alterações na legislação e no rol das atividades desoneradas promovidas até então pelo Governo Federal. Complementando essas análises foi também publicada uma Nota Técnica da ANFIP, abrangendo todas as alterações da legislação produzidas até março de 2015.

A conclusão da segunda análise é a mesma da primeira, e reitera que a prorrogação da desoneração da forma como vem sendo realizada, implica em meter a mão na receita destinada aos cofres da previdência e colocando em risco o financiamento do sistema de Seguridade Social, cujas contas foram agravadas em suas finanças, ainda mais, pela pandemia do COVID-19.

Outra questão relevante foi relatada pelo assessor de Estudos Socioeconômicos da ANFIP, Vanderley José Maçaneiro, que durante debate no Senado Federal, declarou ter ficado meses fiscalizando uma única empresa, sem ter a certeza de que fez tudo correto, tal a complexidade do controle fiscal exigida pela desoneração. A ANFIP produziu Nota Técnica, na qual declara: A desoneração representou muito mais do que uma diminuição dos encargos que estão associados à folha de pagamentos das empresas. Ela foi também um grande processo de renúncia fiscal, ao qual se somam inúmeros outros”.

Com efeito, a reforma administrativa pífia aprovada recentemente, o Governo bem que poderia ter contribuído numa economia de recursos imediata, já pensando numa redução efetiva de gastos com o funcionalismo, através da eliminação de manobras usuais, como: reajustes salariais mascarados de promoções; progressões automáticas; pagamento de produtividade e de comissões; antecipação de remunerações; redução de jornadas e salários de servidores federais; revisão de subsídios; não incorporação de remuneração pelo exercício temporário de cargos de confiança; cessão de funcionário com remuneração superior às praticadas pelo órgão cessionário, dentre outras. Medidas essas que poderiam surtir efeito imediato e começar a produzir alívio sobre o gasto público. Contudo, o executivo preferiu fechar os olhos e continuar a bancar com o dinheiro do contribuinte, a farra desmedida do funcionalismo federal. 

Retomando as análises da ANFIP, o que chama mais a atenção são os reflexos negativos nas contas da Previdência Social e que geram preocupação entre trabalhadores e segurados. As renúncias previdenciárias, que envolviam até 2015 cifras orçamentárias da ordem de trinta bilhões de reais por ano, mais que triplicaram no decorrer dos anos.

Parece óbvio, mas nunca é tarde para reiterarmos a necessidade de regras claras e estáveis nas decisões de governo, e não de medidas do tipo esparadrapo, usando  fontes que se esgotam para financiar programas permanentes, no intuito de estancar as hemorragias provocadas pela má gestão governamental. Evitando assim, o uso indevido de recursos constitucionais carimbados, reservas, precatórios, etecetera,  para fazer frente a despesas com os “nobilíssimos interesses”, sem que nunca seja feito qualquer esforço no sentido de efetivamente, eliminar as gorduras que tornam a máquina estatal insustentável e inviabilizam investimentos que possam reverter se em melhores serviços à população.

Estamos assistindo a uma mudança de paradigma: a troca das “pedaladas fiscais” da Dilma, pela “contabilidade criativa” de Bolsonaro. Ambos não tiveram a coragem de enfrentar a raiz do problema fiscal do país, que se concentra no crescimento da despesa obrigatória primária². A contenção do crescimento da folha de pagamento  dos servidores e revisão de gastos mínimos obrigatórios em algumas rubricas, são medidas inadiáveis. Infelizmente o momento não é propício, e as medidas corretas conspiram contra os interesses eleitorais da classe política, e aí que está o xis da questão!

Só existe uma forma de viabilizar o financiamento do programa Renda Cidadã, é aprovando o Imposto sobre Transações Digitais a partir de 2021. Isso sem mexer no desconto padrão do Imposto de Renda³, que só serviria para aumentar a burocracia e taxar mais quem ganham menos.

Quanto à desoneração da folha, a solução possível seria de prorrogar os benefícios por mais um ano, com o Governo assumindo o compromisso de reposição dos recursos desviados para bancar a desoneração, mesmo que de forma escalonada, até o fim da  gestão. Reiterando às empresas que os benefícios da desoneração não serão mais prorrogados, em hipótese nenhuma, mesmo que venha por aí uma COVID-21!

Embora não tenham sido tomadas as medidas necessárias para redução da despesa publica de imediato e firmado o compromisso de não furar o teto de gastos, penso que não restam alternativas senão a da improvisação! E aí o bicho pega, pois diferentemente de seu antecessor, o Executivo tem acumulado um balaio de derrotas no Congresso, potencializando o risco em uma eventual abertura de processo de impeachment, somando-se a isso o fato do presidente e seus ministros estarem no radar do STF há algum tempo.

Não bastasse a indecisão sobre a proposta de prorrogação da desoneração da folha, da aprovação do Imposto sobre Transações Digitais e da definição sobre a fonte dos recursos para viabilizar o programa Bolsa Cidadã, existe ainda o risco real de não haver quórum em novembro para aprovação das propostas no Congresso, pois as sessões aconteceriam a menos de duas semanas do primeiro turno do pleito municipal. Sem contar que após as eleições dificilmente haverá calendário que permita apreciação de todos os vetos e demais votações pendentes em 2020.

Será preciso muita paciência, negociação e responsabilidade entre Governo e Congresso nos próximos dias para costurarem soluções que permitam ao Brasil sair desse ano perdido de 2020, para um 2021 de retomada gradual da normalidade econômica.

 (1) Refere-se ao grupo dos chamados "invisíveis" do CadÚnico, identificados por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estimado em cerca de 10,9 milhões de trabalhadores elegíveis ao auxílio emergencial que estão fora do Cadastro do Bolsa Família.

(2) São os gastos com pagamento a servidores, folha de pagamento, benefícios da previdência, benefícios assistenciais vinculados ao salário mínimo (abono salarial, seguro desemprego, subsídios; ou podem ser despesas discricionárias (do poder executivo, legislativo e judiciário) 

(3) Dedução padrão de 20% para o contribuinte do Imposto de Renda que opta pelo modelo simplificado, substituindo o abatimento de todas as demais deduções, cujo valor de desconto é igual a R$ 16.754,34 por contribuinte. A medida se implantada irá penalizar 17 milhões de pessoas, exatamente os contribuintes que ganham menos.